“O reacionário” (Luís Martins)
Declaro-me
peremptória e decididamente contra o progresso. “O progresso – adverte-nos
Carlos Drummond de Andrade – nos dá tanta coisa que não nos sobra nada nem para
pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo é inútil e atravancador.” É
inútil e atravancador o aparelho de TV, em cores ou descolorido, que matou a
conversa caseira, com a interminável novela; é inútil e atravancador o
automóvel, que nos cria problemas de estacionamento e não nos leva a parte
nenhuma; é inútil e atravancador o telefone, que só nos transmite conversa
fiada, enguiça nos momentos mais críticos e exige a nossa atenção nas ocasiões
mais impróprias (em geral - , quando estamos no banho); é inútil e atravancador
a iluminação feérica das ruas, que nos priva daquilo que segundo o mesmo grande
e nobre poeta, “cada um de nós carece numa cidade excessivamente iluminada: uma
certa penumbra”. É inútil e atravancador o cérebro eletrônico, que nos priva de
pensar. Atravancador e inútil é o veículo motorizado, que nos priva de andar.
Portanto,
senhoras e senhores, desculpai o mau jeito, mas sou contra o progresso. Sou
contra a energia atômica, o computador, a futurologia, o “video-tape” e o
“striptease”. Sou contra o unissexo, porque penso como meus avós, cada macaco
no seu galho.
Sim.
Com muito orgulho, declaro-me um reacionário, um anacrônico, um remanescente de
outras eras. Sou contra o câncer, o enfarte de miocárdio e o acidente de
trânsito; mas decididamente a favor da enxaqueca, do nó nas tripas e da barriga
d’água. Contra o antibiótico, o transplante de coração e o enxerto de rins; mas
a favor da sanguessuga, do escalda-pés e da compressa de mostarda.
Prefiro
o alfarrábio ao “best-seller”. O realejo ao transístor. Prefiro o cavalo animal
ao cavalo motor. O cachorro frio ao cachorro quente. Prefiro a arte à antiarte.
A mão à contramão. Prefiro a lavagem dos pés à lavagem do cérebro. O campo
propriamente dito ao campo de concentração. Prefiro o banguê e a liteira ao
avião supersônico e ao módulo lunar, Prefiro a lua ao satélite artificial.
Em
suma, senhoras e senhores, prefiro o homem ao robô. Prefiro o meu velho e
cansado coração de artérias e músculos, ao mais bacana, sofisticado e
aperfeiçoado coração de plástico.
Vocabulário:
Alfarrábio:
1 livro antigo ou velho, de pouca ou nenhuma
importância
2 livro velho, ou há muito editado, e que
tem valor por ser antigo
3 Derivação: por extensão de sentido.
anotação antiga (mais us. no pl.)
Ex.: disse que ia consultar seus a. para
dar uma resposta mais precisa
Peremptório:
adjetivo
1 que perime
2 que é terminante, definitivo, decisivo
3 Rubrica: termo jurídico.
que causa perempção, que torna sem efeito
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.