domingo, 13 de novembro de 2016


O reacionário” (Luís Martins)



            Declaro-me peremptória e decididamente contra o progresso. “O progresso – adverte-nos Carlos Drummond de Andrade – nos dá tanta coisa que não nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo é inútil e atravancador.” É inútil e atravancador o aparelho de TV, em cores ou descolorido, que matou a conversa caseira, com a interminável novela; é inútil e atravancador o automóvel, que nos cria problemas de estacionamento e não nos leva a parte nenhuma; é inútil e atravancador o telefone, que só nos transmite conversa fiada, enguiça nos momentos mais críticos e exige a nossa atenção nas ocasiões mais impróprias (em geral - , quando estamos no banho); é inútil e atravancador a iluminação feérica das ruas, que nos priva daquilo que segundo o mesmo grande e nobre poeta, “cada um de nós carece numa cidade excessivamente iluminada: uma certa penumbra”. É inútil e atravancador o cérebro eletrônico, que nos priva de pensar. Atravancador e inútil é o veículo motorizado, que nos priva de andar.
            Portanto, senhoras e senhores, desculpai o mau jeito, mas sou contra o progresso. Sou contra a energia atômica, o computador, a futurologia, o “video-tape” e o “striptease”. Sou contra o unissexo, porque penso como meus avós, cada macaco no seu galho.
            Sim. Com muito orgulho, declaro-me um reacionário, um anacrônico, um remanescente de outras eras. Sou contra o câncer, o enfarte de miocárdio e o acidente de trânsito; mas decididamente a favor da enxaqueca, do nó nas tripas e da barriga d’água. Contra o antibiótico, o transplante de coração e o enxerto de rins; mas a favor da sanguessuga, do escalda-pés e da compressa de mostarda.
            Prefiro o alfarrábio ao “best-seller”. O realejo ao transístor. Prefiro o cavalo animal ao cavalo motor. O cachorro frio ao cachorro quente. Prefiro a arte à antiarte. A mão à contramão. Prefiro a lavagem dos pés à lavagem do cérebro. O campo propriamente dito ao campo de concentração. Prefiro o banguê e a liteira ao avião supersônico e ao módulo lunar, Prefiro a lua ao satélite artificial.
            Em suma, senhoras e senhores, prefiro o homem ao robô. Prefiro o meu velho e cansado coração de artérias e músculos, ao mais bacana, sofisticado e aperfeiçoado coração de plástico.


Vocabulário:

Alfarrábio:

1 livro antigo ou velho, de pouca ou nenhuma importância
2 livro velho, ou há muito editado, e que tem valor por ser antigo
3 Derivação: por extensão de sentido.
anotação antiga (mais us. no pl.)
Ex.: disse que ia consultar seus a. para dar uma resposta mais precisa

Peremptório:
adjetivo
1 que perime
2 que é terminante, definitivo, decisivo
3 Rubrica: termo jurídico.
que causa perempção, que torna sem efeito


“O Estado de São Paulo” – 28-9-1972




13 de novembro de 2016

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